Publico aqui uma correspondencia recebida de um jovem amigo,( cujo nome omito, assim como alguns dados que permitiriam sua identificação, pois sou um tanto paranóica quando se trata de poder e segurança,) e que foi encaminhado para algumas pessoas para esclarecimentos e divulgação, com sua autorização formal. Comentarios, enviarei para ele.
"Queridos amigos e amigas,
Mas uma vez me sinto no dever manifestar o meu pensamento sobre os
ultimos acontecimentos passados aqui na Bolivia. Para começar quero
lembrar a todos que estou aqui ................................................
lutando junto com as pessoas que vivem na extrema pobreza para que
tenham reconhecidas sua dignidade humana. Não estou envolvido em
politicas partidarias, com governo ou oposição. Apenas faço uma
leitura a partir de informações que certamente não chegam até aí.
Para começar asseguro a todos que estamos muito bem e que não existe
qualquer previsão de que os disturbios possam chegar aqui a La Paz.
La Paz, fica no ocidente, o altiplano boliviano que tem uma
população conformada majoritariamente por pessoas de origem Aymara e
Quechua. Desde a chegada dos espanhóis os povos e as terras do
altiplano foram exploradas a exaustão sustentando toda a Bolivia e,
durante pelo menos um século, todo o império espanhol. Na era
republicana os indigenas continuaram sendo explorados e
discriminados pelas classes dominantes, descendentes de europeus.
Até a eleição de Evo Morales, uma pessoa com sobrenome indígena não
podia entrar em uma univesridade ou aceder a um posto no exército
(exemplos basicos). Em Sucre (capital constitucional e um dos focos
de disturbios) alguns restaurantes proibiam explicitamente a entrada
de indigenas (continuam fazendo isso na prática).
O Oriente, cuja principal cidade é Santa Cruz começou a
desenvolver-se com mais força a partir da década de 70 num modelo de
latifundios agrícolas baseado na exploração e dominação dos povos
indígenas dessa região (as maiores populações são de guaranís e
chiquitanos). Até hoje são recorrentes os casos de trabalho escravos
nesses latifundios.
As elites do país sempre governaram com mão forte, dilapidando todas
as riquezas naturais do país, estimulando o tráfico de cocaína (ao
mesmo tempo em que combatiam o consumo da folha de Coca), com uma
estrutura estatal corrupta que não atende as minimas necesidades da
população. Em alguns momentos históricos, algumas categorias
profissionais, principalmente os mineiros responáveis pela principal
riqueza do país, chegaram a obter uma certa força de pressão e foram
violentamente reprimidos no estilo das piores ditaduras que passaram
pela América Latina.
A eleição de Evo Morales que só foi possível depois de alguns anos
de fortes mobilizações sociais foi um marco importante num processo
de mudança no país. Por primeira vez, num país onde quase 70% da
população se identifica como pertencendo a algum povo indígena,
um"índio" chegava ao cargo. E por primeira vez os grupos dominantes
se viam fora do poder central ao mesmo tempo em que perdiam a
maioria no congresso.
Mas continuaram com um dominío total dos grandes meios de
comunicação. E mantiveram também o poder em seus departamentos
(estados), basicamente Tarija, Santa Cruz, Beni e Pando aonde estão
as novas riquezas bolivianas, o gás e o petróleo. Todos os atuais
prefeitos (governadores) desses departamentos são afilhados
políticos do General Hugo Banzer duas vezes presidente do país (uma
vez através de golpe de estado e outra eleito "democraticamente"
pelos meios de comunicação), uma das figuras mias sinistras da
história política do continente, sobre quem recae a culpa de
inúmeros crimes de tortura, assasinato e corrupção. Também
participaram do governo de Gonzalo Sanchez de Lozada que fugiu em
2003 para os Estados Unidos para escapar de um processo de genocídio
pela morte de 64 pessoas.
Evo herdou uma estrutura estatal corrupta, falida e quase sem
presença nos departamentos mais distantes, principalmente os
amazônicos, Beni e Pando, aonde um pequeno número de famílias são a
lei. Detém o poder políticio e economico, seus filhos e protegidos
fazem o que querem sem precisar se preocupar com qualquer punição.
Há algumas semanas eu fui a Cobija capital de Pando, na fronteira
com o Acre. Aí só é possível chegar de avião num aeroporto sem
nenhuma estrutura ou em 3 dias de onibus, saindo de La Paz, na época
de seca. No próprio ambiente da cidade e nas conversas com algumas
pessoas de confiança, se sente o domínio total do prefeito Leopoldo
Fernandes. Ali na região da triplice fronteira Brasil-Peru-Bolivia é
de conhecimento comum o envolvimento do "cacique de Pando" como
gosta de ser chamado, nos latifundios pecuários, madeireiras e
tráfico de drogas, sendo inclusive suspeito de algumas mortes cujas
investigações nunca são concluídas.
Enquanto estavam no poder central essas lideranças nunca falaram em
"autonomía", as propostas nesses sentidos vinham dos movimentos
sociais pedindo autonomia para os povos indígenas. Agora que
voltaram aos seus redutos levantam a bandeira da autonomia
departamental como solução de todos os problemas. É certo que a
Bolivia precisa de um processo de descentralização, mas essas
propostas de autonomia tem como único objetivo manter o domínio e
privilégios sobre as terras e recursos naturais dos seus
departamentos. Os chamados estatutos autonomicos, que são
verdadeiras constituições paralelas, desconhecem leis federais e o
governo central. Uma das grandes questões é que a nova constituição
traz uma reforma agrária radical e necessaria impondo um limite a
propriedade que afetaria diretamente suas riquezas. o outro ponto é
o controle sobre os lucros do Petróleo. Pelos estatutos esses dois
pontos ficariam sob controle do governo departamental.
Essa última onda de violência têm como desculpa o corte de 30% feito
pelo governo sobre o Imposto Direto sobre Hidrocarburos (IDH) que é
repassado as prefeituras, para pagar uma renda mensal mínima aos
idosos (que até então não recebiam qualquer tipo de assistência).
Essa desculpa é bem esfarrada já que com as nacionalizações feitas
pelo governo essas arrecadações aumentaram absurdamente, de modo que
as prefeitura não conseguiam gastar nem 60 % desses recursos e não
existe qualquer projeto ou proposta para a utilização desse
dinheiro. O verdadeiro objetivo é atacar e debilitar o governo
levando a dois caminhos: ou derrubar o presidente e voltar ao poder
central, ou acirrar os conflitos levando a uma divisão do país. Não
são poucos os que gritam "independência" pelas ruas de Santa Cruz.
O governo e agencias estadounidenses sempre estiveram presentes e
influindo em todas as etapas da política boliviana. Enquanto com uma
mão oferece apoio humanitário, com a outra gera dependência,
violência e miséria, para seguir com os comércios de armas, drogas,
medicamentos e oturas práticas. Isso até a mais ingênua das pessoas
sabe que acontece em todas as partes do mundo. A expulsão do
embaixador Phlip Goldberg (que tem um currículo considerável como um
dos marcável atuação nas guerras de divisão da ex-Iugoslávia), não
foi um ato impensado ou irresponsável como se anuncia, ele foi
alertado várias vezes sobre suas interferência na política do país e
suas relações com os grupos de oposição.
Como base de sustentação para essa política de enfrentamentos e
dominação, existe um aparato ideológico fortíssimo capaz de fazer
inveja aos propagadores do nazismo na Alemanha. Aliás, certamente
inspirada por eles. Os habitantes do ocidente (La Paz) são chamados
de Kollas e do oriente de Cambas. Depois da segunda guerra mundial
algumas importantes figuras do governo de Hitler fugiram para a
América do Sul. Algumas delas vieram parar em Santa Cruz para onde
também vieram, na década de 70, croatas fugindo do comunismo. Uma
dessas lideranças nazistas foi Klaus Barbie, "o carniceiro de Lyon"
que viveu 40 anos na Bolivia antes de ser capturado. essa história
acaba de ser lançada em filme. Aí se estabeleceram com grandes
propriedades de terra e ajudaram na disseminação de uma ideologia
racista.
Durante muitos anos esse ódio ao indígena e ao Kolla seguiu latente
explodindo em algumas ocasiões e se condensando em alguns grupos
específicos como a União Juvenil Crucenhista e seus similares em
outros departamentos. Milicia facista nos moldes da Juventude
Hitleriana (da qual Barbie fez parte) que funciona como tropa de
choque das oligárquias. Não têm nenhuma vergonha em exibir a
suástica pelas ruas, em ameaçar e atacar pessoas de acordo com a cor
da pele ou lugar de origem. As táticas utilizadas para criar esse
clima de ódio entre a população são as mesmas de sempre. O medo, a
ignorância, o controle da informação, a crise econômica. Os culpados
de tudo são os Kollas, assim como na Alemanha eram os judeus, ou
como aqui em La Paz são os peruanos. O problema sempre vem de fora.
Nesse caso o que atrai é a idéia de uma Raça Camba (explicitamente),
branca, europeizada, moderna, rica e desenvolvida, contra uma massa
subhumana, atrasada, morena, indigena, etc.
Quando estive em Cobija estavam bloqueando a ponte que liga à cidade
de Brasiléia no Brasil, de onde vem milhares de brasileiros para
fazer compras nos fins de semana, desde Rio Branco e outros lugares
ainda mais longe. Na minha cabeça não fazia sentido atrapalhar a
principal atividade ecônomica da cidade e resolvi averiguar. A coisa
é que o comércio da cidade é feito por migrantes de Cochabamba, La
Paz, Oruro, Potosí... ou seja de Kollas. Então o objetivo era
atingir diretamente a essas pessoas, e não o governo. Conversando
com uma senhora ela me falou sobre os "paros civicos" (greves)
quando elas são obrigadas a fechar as lojas como se estivessem
apoiando a manifestação. Quando perguntei como faziam isso ela me
disse: "Eles vem de moto, quebram os vidros levam a mercadoría,
agridem, não tem jeito".
Essa última crise é a mais violenta desde que estou aqui. A situação
é grave. Já a algum tempo as pessoas vem sendo agredidas somente por
que vem de La Paz, Oruro ou Potosí, porque são Ayamaras ou Quechuas,
ou porque supostamente simpatizam com o governo.
Nessa terça-feira a violência explodiu em Santa Cruz e Tarija com a
invasão violenta e saques de instituições publicas, ONGs, federações
de camponeses e indígenas, ataques a casas e comércios de Kollas,
Instituições de apoio cubanas e venezuelanas. Nem mesmo os canais de
televisão puderam maquiar as imagens que mostravam roubos,
vandalismo, linchamento de homens e mulheres.
Agora falam em confrontos entre manifestantes contra e a favor do
governo. Não se trata disso, até porque os movimentos que apóiam o
governo não tiveram nem tempo de se mobilizar. O que aconteceram
foram ataques diretos a camponeses, trabalhadores e qualquer outra
pessoas identificada por eles como sendo a favor do governo. Quando
foi possível essas pessoas se juntaram para se defender. Como no
caso do mercado camponês quando chegaram jovens unionistas para
invadir e saquear. Os comerciantes se juntaram não para defender o
governo de Evo Morales, mas seus bens e suas vidas. Apesar de terem
conseguido impedir a invasão muitos saíram feridos.
A pior situação é em Cobija, aonde segundo os jornais morreram oito
pessoas, mas fontes muito mais confiáveis revelam que o número passa
de 20! Além do que os jornais falam que os camponeses estavam
armados e teriam atacados a funcionários da prefeitura. Nova
mentira. Os camponeses não estavam e não estão armados, seus líderes
estão sendo perseguidos, não estão podendo resgatar os corpos dos
companheiros vitimados, seis foram encontrados boiando no rio, entre
eles o de uma mulher grávida. Um grupo de uqase 15 pessoas está
sendo mantido como refém. Isso foi o que eu pude saber até agora.
Para quem se preocupa com a situação da Bolivia eu dou um conselho.
SEMPRE desconfiem das notícias, porque em quase 100% dos casos
trazem mentiras e interpretações tendenciosas.
Os caminhos para uma solução pacífica parecem bem dificeis. Os
movimentos sociais agora também estão mordidos e prometem reagir.
Cobram do governo uma posição mais dura, como a decretação de um
estado de sítio e uma militarização das regiões, o que o governo se
nega a fazer. Os grupos dominantes não vão abrir mão dos seus
privilégios. De uma maneira eu vejo como uma elite derrotada e
decadente em seus últimos esforços desesperados de manter seu
domínio, mas que ainda representa um perigo muito grande para o país
e para a região. É uma situação muito complicada.
Apesar disso, eu tenho fé em Deus e no povo que vai saber encontrar
seu caminho na construção de um mundo melhor. Os pobres sofrem com a
violência a cada dia, independentemente da situação do país. Estão
cansados disso. Querem paz. Mas uma paz com justiça, respeito e
dignidade. Não vão se submeter outra vez ao jugo das elites. Nesse
caminho eu vejo que não há volta. O governo de Evo tem muitos
problemas, mas tem pelo menos esse logro, de fazer com que as
pessoas saiam da humilhação, da vergonha e comecem a lutar por seus
direitos. Com o sem o Evo vejo que esse processo não tem volta
atrás. A grande maioria não me parece querer revanche ou vingança,
só o direito de viver e criar seus filhos com dignidade.
Obrigado aos que tiveram paciência de ler até aqui. Quero dizer que
tudo o que escrevi são opiniões pessoais e de minha inteira
responsabilidade. Não representam nenhum posicionamento do movimento quarto mundo ou de qualquer outro grupo. Quem achar que vale a pena pode transmitir para quem quiser. Também quem quiser dialogar estou sempre disposto. Novamente volto a recorrer a minha credibilidade pessoal. Quem me conhece sabe das minhas intenções.
Um grande abraço a todos!"
2 comentários:
Não conhecia muitos pormenores focados deste importante depoimento. Que gostei de ler.
O pós-ditadura é sempre complicado. São precisos muitos anos e a paciência é o que se pede aos cidadãos desde que o novo poder em democracia seja minimamente competente. E, caso haja incompetência, é sempre preferível eleger novos governantes que voltar ao passado.
Parabéns ao autor do texto e também para ti, que o publicaste.
Beijinhos cara amiga.
Muito a propósito, a tira do Laerte na Folha de S. Paulo de 30.09.2008: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/images/pira30092008.gif
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